quinta-feira, janeiro 26, 2012

Leituras

O jornal virtual Téla Nón disponibilizou o texto de uma palestra, “IDENTIDADE CULTURAL E SANTOMENSIDADE”, profesrida por Albertino Bragança:

“IDENTIDADE CULTURAL E SANTOMENSIDADE”

Após trinta e seis anos de independência nacional, S. Tomé e Príncipe debate-se com alguns problemas estruturais de reconhecida gravidade, que vêm retirando aos santomenses a possibilidade de uma vida à altura das suas aspirações à data histórica de 12 de Julho de 1975.

Delinearam-se projectos, arquitectaram-se planos, proliferaram os estudos de diagnóstico e os programas de governo, empenhou-se a classe política na procura das soluções mais susceptíveis de evitar o fosso em que o país se ia progressivamente afundando, sem que de tal esforço se tenha chegado a resultados palpáveis.

Por tudo isso, uma pergunta se impõe: será que tal insucesso se deve apenas à escassez de recursos (humanos, materiais, financeiros e outros) com que o país tradicionalmente se debate ou existe algo mais a perturbar a via do desenvolvimento sustentado do nosso país, que é, ao fim e ao cabo, o que todos almejamos?

Não será que, face aos condicionalismos atrás citados, se torna premente abordar as questões de fundo que se colocam à nossa identidade enquanto comunidade específica inserida no mundo, de modo a viabilizar, da melhor forma, o nosso percurso colectivo pelos caminhos do futuro?

Por isso agradeço a presença de todos e bem assim a oportunidade que me dão de explanar e partilhar convosco algumas ideias com que convivo há algum tempo, embora vos coloque já de sobreaviso para o facto desta exposição não passar de desluzidas considerações acerca de tema tão complexo mas aliciante, simples curioso como me considero ao navegar em domínios cuja especialidade não tenho como reivindicar.

Feito o alerta, tentemos responder à questão central que aqui nos traz: Quem somos nós?

A resposta é imediata: somos santomenses, africanos, fruto de um longo processo de caldeamento de culturas que se encontraram no contexto de um processo de colonização que, tendo embora posto em confronto gentes e civilizações provenientes da Europa e da África, uniu as vivências de senhores e escravos e deu azo a um povo com características bem específicas.

A esse propósito, permitam-me uma longa, citação do geógrafo, poeta, sociólogo e professor Francisco José Tenreiro, o qual considera que “a situação privilegiada da ilha, primeiro na rota da Índia e, mais tarde, entreposto entre a costa ocidental de África e a América do Sul, facilitou contactos de raças, de culturas e de produtos. Foi, na realidade, desde o final do século XV, uma das grandes encruzilhadas do Mar-Oceano onde se encontraram homens, negros e brancos, de diferentes proveniências e com estilos de vida diferenciados, e se misturaram plantas do Mediterrâneo, de África, da Ásia quente e chuvosa e da América do Sul”.

Diz ainda Francisco Tenreiro que “foi a ilha campo de ensaio de culturas, no sentido mais amplo que a esta palavra se pode atribuir. Além de portugueses da Metrópole, que traziam consigo as formas de um estilo de vida desenvolvido no mundo mediterrâneo, também madeirenses, com a sua experiência do fabrico do açúcar e de ocupação de terras virgens, e estrangeiros, como Genoveses e Franceses, técnicos também do açúcar ou mercadores. Ali arribam ainda, embora em contactos frustes, os Holandeses no decorrer do século XVII. Da costa africana, elementos negros, introduzidos como escravos, e que, dada a enorme latitude que o resgate teve para as populações de São Tomé, constituíam os mais variados tipos raciais: Sudaneses e Guineenses primeiro, Bantos ou Sul-Africanos mais tarde. …. Mais tarde ainda, na segunda metade do século XVIII, também os contactos com as gentes do Brasil: brancos, negros e crioulos que retornam ao golfo da Guiné ou para comerciar ou mesmo para se estabelecerem no reino do Dahomé; São Tomé é ponto de passagem, pelo menos no regresso, dos navios da Baía que demandavam aquelas paragens: isto depois de parte da população de São Tomé a ter abandonado ao tempo da decadência do açúcar e por sua vez se ter baldeado para o nordeste brasileiro”(1).

Somos igualmente descendentes dos escravos mulatos e negros alforriados pelo foral de 1515 e seguintes e pelos escravos que foram sendo sucessivamente libertos pelos seus senhores e pela administração, como ocorreu em 8 de Novembro de 1875, na sequência das sucessivas reivindicações reclamando a abolição imediata e efectiva da escravatura, anteriormente já abolida por Decreto de 25 de Fevereiro de 1869.

Contrariando a forma dicotómica como as teses colonialistas costumam abordar o processo de povoamento das ilhas, referindo-se ao confronto Europeus livres/Negros escravos, a historiadora portuguesa Isabel Castro Henriques, com base nos textos portugueses dos séculos XV e XVI, afirma que “ na fase inicial da colonização de São Tomé, que decorre grosso modo até ao início do segundo quartel do século XVI, verifica-se a coexistência de uma maioria de Europeus livres com uma fracção minoritária de Africanos livres, de uma grande inteligência e ricos, mas nem por isso menos activos e participativos no processo em curso”. (2)

Todos eles deram o seu contributo na formação do que somos hoje, devendo dizer-se, como o faz o reputado historiador santomense Carlos Neves, que “ dos povos transferidos, das culturas transportadas, das línguas postas em convívio, originaram-se importantes sínteses, que deram lugar a um outro povo”.(3)

Estamos, pois, perante uma sociedade profundamente heterogénea, constituída por povos das mais diversas proveniências e origens e, por isso marcada, desde as suas origens, por duas grandes características: a diversidade e a conflitualidade, que fizeram sempre do arquipélago um verdadeiro caldeirão de instabilidade política e social.

Do ponto de vista da diversidade, vejamos como se estruturavam no século XVI, de forma vincadamente hierarquizada, os grupos sociais então prevalecentes: primeiro, o pequeno núcleo dos europeus, compreendendo por volta de 1% da população, que, chegados a S. Tomé a partir dos finais do séc. XV e constituído, na sua maioria, por degradados mandados à força pela justiça, ocupavam “ o nível hierárquico mais elevado do poder civil, eclesiástico e militar, o que lhes conferia o controlo do aparelho político e administrativo e, consequentemente, do sistema económico. De referir que, a maior parte das vezes, era a capacidade económica que permitia a ascensão a cargos importantes, principalmente na estrutura militar ou no senado da câmara”.(4)

Em seguida, a elite dos moradores livres da cidade, os moladôs poçon, ou filhos da terra constituída pelos mestiços, de grande poder económico e sempre em disputa pelo poder político, sobretudo na nomeação para juízes da Câmara (como aconteceu, por exemplo, em 1553, aquando do movimento de Yom Gato), cuja importância social atingiria no século XVIII hegemonia quase plena, e pelos funcionários e proprietários negros, uma parte dos quais também senhores de terras e de escravos.

Nas ilhas viviam também os negros forros, escravos libertos, que odiando o trabalho agrícola que foi sempre o seu e em condições absolutamente degradantes e de exploração, debandam para a cidade, em busca de um emprego que não existe. Apesar da apreciação negativa que os europeus faziam dos elementos desse grupo social, a quem chamavam daninhos e preguiçosos, eles trabalhavam no porto, cuidavam dos escravos em trânsito ou iam negociar ao outro lado da costa, entregavam-se ao comércio de ocasião ou procuravam desesperadamente uma vaga no pequeno funcionalismo…

O arquipélago é ainda espaço de residência dos escravos domésticos, que constituíam a grande maioria da população. Na prática, todas as famílias de moradores os possuíam, pois, para além do trabalho gratuito que proporcionavam, eram testemunhos de poder e alvo da exploração e ostentação mais descarada por parte dos seus donos.

No último escalão social estavam os escravos de plantação, afectos ao duro trabalho dos engenhos na produção do açúcar “os quais têm obrigação de trabalhar toda a semana para o seu senhor, excepto ao sábado, que trabalham para si e nestes dias semeiam milho zaburro…, raízes de inhame e muitas hortaliças. O senhor nem mesmo faz despesa em dar-lhes vestidos, nem de comer, nem em mandar-lhes construir choupanas, por que eles por si mesmos fazem todas estas coisas” (5)

Havia ainda os escravos vindos do continente, depositados como gado em armazéns destinados à sua redistribuição com destino às Américas.

Na sua preciosa obra “Mulheres, Sexualidade e Casamento em S. Tomé e Príncipe (séculos XV – XVIII), referindo-se à conflitualidade que sempre marcou a vida do arquipélago, o historiador português Arlindo Manuel Caldeira afirma que “é a heterogeneidade social e étnica que faz da cidade de S. Tomé um extraordinário campo de aculturação, mas é também ela que transforma esse espaço urbano num lugar de conflito quase permanente”.

Nesse mesmo livro, diz o autor que “deve ser difícil, de facto, encontrar uma sociedade mais conflitual do que esta”, factor que tem, em São Tomé, a particularidade de se manter quase sem alteração durante séculos…

De facto, são de vária natureza os conflitos que dilaceravam a sociedade da época:
• Étnico-sociais, caracterizados sobretudo pelo antagonismo entre senhores e escravos, pela luta dos mestiços livres a favor da sua afirmação política, bem como pela oposição dos filhos da terra aos governadores e outros funcionários vindos de Portugal;
• Institucionais, marcados sobretudo pela discórdia entre os governadores e os ouvidores (o principal magistrado judicial do arquipélago);
• Civis-religiosos, traduzidos pelas permanentes contradições entre as autoridades civis e religiosas, como o que ocorreu nos finais do século XVI entre o Bispo D. Francisco de Vila Nova e o Governador D. Fernando de Menezes, momento aproveitado por Amador para desencadear a sua revolta:
• Religiosos, com incidência no interior da própria igreja católica, ora entre o Bispo (por norma, europeu e branco) e os cónegos, na sua maioria filhos da terra, ora entre estes últimos.

A natureza generalizada de tais conflitos teve também a sua incidência na relação entre os habitantes das duas ilhas, que, na opinião do estudioso Augusto Nascimento “remontavam, pelo menos, a transferência da capital para o Príncipe em 1753, sendo que, com o liberalismo e a rotatividade dos governadores, se sucederam as questiúnculas, tendo a ilha de S. Tomé chegado, em 1837, a declarar-se independente, desavença só sanada com a intervenção da Armada”. (6)

Segundo o mesmo autor, notáveis dessa elite dos filhos da terra “ afrontaram o governador José Maria Marques nos seus dois mandatos, por certo uma das razões pela qual, à revelia de Lisboa, transferiu, em 1852, a capital de Santo António do Príncipe para S. Tomé.”

Nos finais do séc XVII, princípios do XVIII, duas grandes mudanças se haviam operado na esfera económica de S. Tomé e Príncipe, na sequência da grande crise que se sucedeu ao descalabro do ciclo do açúcar: em primeiro lugar, o comércio de escravos, fazendas, marfim e cera substituíra de forma radical a florescente produção açucareira do séc. XVI; em segundo lugar, as relações económicas do arquipélago já não se faziam com o reino, S. Tomé tinha-se tornado escala habitual de grande parte do tráfico entre as zonas do Golfo da Guiné e o continente americano.

Tratou-se de um período de grande vitalidade económica, que não tardaria contudo a desmoronar-se, já que o comércio então desenvolvido, embora bastante lucrativo, se baseava em mercadorias oriundas de outras paragens, não favorecendo, por isso, o desenvolvimento de uma agricultura própria. “Os habitantes de S. Tomé e Príncipe, mergulhados na aparência do lucro fácil que o comércio ilude garantir em determinados momentos, não souberam criar riquezas em áreas produtivas. Pelo comércio abandonaram a agricultura, venderam os seus escravos, jóias, moedas de ouro e prata, e outros haveres, permutando tudo por supérfluas mercadorias da Europa “. (8)

As ilhas entravam uma vez mais em decadência económica, enquanto na sociedade aumentavam os roubos, os vícios, o contrabando, as extorsões, numa tentativa de obtenção de mais rápidos rendimentos, ainda que de forma ilícita.

Mas foi também, reconheçamo-lo, a época em que se começou a forjar o embrião, ainda que incipiente, de um sentir comum aos filhos da terra, aos que dela reivindicavam como sua; “ o período durante o qual germinou na população autóctone, negros e mestiços, os reflexos de um nacionalismo ainda embrionário, que se traduziu nos variados conflitos sociais e étnicos”.(9)

Era o florescer da ideia de Nação, ligada ao sentido de nascimento e de cidadania, “ de um conceito vago, uma imagem do nosso espírito, um sentimento presente em um número importante de indivíduos, querendo fazer parte de um mesmo grupo”. (10)

No terceiro quartel do século XVIII, com o afastamento de Portugal das suas colónias africanas, a favor do relacionamento com o Brasil, e a dificuldade crescente em apetrechar o arquipélago com novas vagas de europeus, os filhos da terra, sobretudo os mestiços, senhores de terras e escravos, começam a ter posição dominante na vida do arquipélago, ocupando importantes cargos que lhes estavam anteriormente vedados, o que levantava sobremaneira os receios das autoridades do arquipélago.

Em carta datada de 1784, estas alertavam a Metrópole para o facto de “ caso não fossem tomadas as medidas convenientes, num período de dez anos, a ilha ficaria completamente em poder dos negros nacionais, sendo já estes os que fazem figura na câmara e formão o corpo do clero… Com efeito, dez anos mais tarde, o mais alto magistrado da coroa informava de que, devido à falta de brancos, os mulatos haviam ocupado todos os cargos da governação e da milícia, razão pela qual solicitava o envio de degredados de Portugal a fim de aumentar a população branca. (7)

A introdução em S. Tomé do cacau e do café nas duas primeiras décadas do século XIX, ligada em grande parte à revolução social que levara à abolição do trabalho escravo, provocou uma autêntica revolução na estrutura social do país.

Ansiosos de terra para produção desses preciosos bens, cujos preços eram cada vez mais elevados no mercado internacional, agricultores portugueses, apoiados pelo capital financeiro do seu país, conseguiram terras pelos meios mais fraudulentos (roubo de terrenos por desvio das marcações, compra a preços descaradamente baixos, etc.), criaram as grandes roças, conduzindo progressivamente à pobreza e marginalidade a importante elite dos filhos da terra.

De facto, a implantação dessa estrutura económica, apoiada sobretudo pelo Banco Nacional Ultramarino, em situação da mais completa hostilidade para com os filhos da terra, a quem era em absoluto negada a possibilidade de crédito, afectou drasticamente as condições de vida da elite local, tendo conduzido assim para a marginalidade a camada mais relevante dos naturais das ilhas, os membros da qual “ à medida que a nova norma económica ia estremando as classes sociais, decaíam como grupo económico importante, aproximando-se como elemento desfavorecido dos antigos libertos. Não tardaria assim que a palavra forro passasse a designar todos os indivíduos, mulatos ou negros, naturais da ilha. (11)

Este novo realinhamento dos grupos sociais, que marcou de forma assinalável o declínio da classe dos proprietários mestiços e negros, naturais das ilhas, contribuiu no entanto para entrosar e reforçar neles o sentimento de pertença ao espaço que os viu nascer, fazendo aflorar, agora com mais nitidez e fulgor, os elementos consubstanciadores da sua identidade como povo, ou seja, a sua são-tomensidade.

Se pode parecer que me abalancei demasiado em matérias de natureza histórica, há que entender que só isso nos permitirá reflectir sobre o processo de formação da identidade santomense e conhecer os elementos que se foram paulatinamente congregando para a sua determinação.

Daí que nesta abordagem sobre as nossas origens, enquanto povo e nação com características bem específicas, nos vejamos obrigados a abordar um importante aspecto da estratégia de dominação colonialista que se traduziu na forte pressão assimilacionista que fez recair, nos inícios do século XX, sobre a elite santomense, a qual terá sobremaneira estado na origem das actuais contradições entre a elite santomense e determinados aspectos da sua cultura.

Tal como foi referido, S. Tomé e Príncipe foi sempre território de imigração e de culturas de alto rendimento económico, ao qual chegaram grandes fluxos de gentes vindos da Europa e da África que na ilha se foram sucessivamente fixando, indo engrossar os diversos grupos sociais ali prevalecentes.

Este é um importante aspecto que viria a estar na origem da aplicação pelas autoridades coloniais de algumas medidas redutoras da assumpção pelos santomenses das suas raízes culturais, cientes como estavam da importância decisiva do arquipélago no processo de acumulação primitiva do capital nas suas possessões africanas.

Os diversos grupos postos então em contacto, não obstante as características culturais que os distinguem, estabeleceram entre si relações que se fundamentaram nos seguintes elementos: uma comunicação corrente assente no uso do crioulo forro, que, segundo Francisco Tenreiro “esteve sempre presente nas relações económicas entre filhos da terra e europeus e foi ainda o veículo das relações de amorabilidade entre homens e mulheres de grupos sociais diferentes; linguagem do comércio, linguagem do amor e primeira língua que as crianças aprendiam com o leite”(3); a religião, ou seja, o catolicismo, desde logo entendido pelos escravos negros, gente desenraizada e de proveniências diversas, como algo que diminuía a dor e o sofrimento de que eram acometidos; por último, a mestiçagem que fez elevar sobremaneira a população nativa, estimulada é certo pela ordem do próprio rei “para a dita ilha povoar”, mas que cedo foi ultrapassada pelo facto de as doenças palúdicas que dizimavam sobretudo os estrangeiros, desmotivarem a vinda de mulheres europeias, restando o recurso às mulatas ou às negras que, na opinião de Francisco Tenreiro, “fizeram muito mais pela harmonização das gentes que as medidas legislativas”…

Mas se durante mais de três séculos o crioulo forro foi língua franca que permitiu a comunicação entre os diversos grupos, na conjuntura política e económica dos finais do século XIX, princípios do séc. XX, marcada pela feroz luta pela posse da terra e a forte incidência dos capitais portugueses atraídos pelos elevados preços do cacau e do café, tornava-se necessário impor às elites letradas santomenses, em particular as que foram emergindo no funcionalismo público pela necessidade de quadros subalternos para o exercício da vida administrativa, os valores dominantes do colonialismo, em detrimento dos seus próprios, como uma forma de garantir a sua adesão e fidelidade aos objectivos de usurpação prosseguidos pelo regime. Estas elites, receosas da perda eventual dos raros privilégios que ainda lhes restavam, passaram a banir elas próprias do seu seio o crioulo forro e a proibir o seu uso no ambiente doméstico.

Por estranho que possa parecer, tal fenómeno foi-se projectando com rara persistência até à actualidade, o que facilmente se comprova pelo estatuto da mais completa inferioridade a que vimos relegando ainda hoje as línguas nacionais em relação ao Português, marginalizando e colocando em risco de extinção idiomas com antecedentes ancestrais que constituem marcas específicas da nossa identidade crioula e cuja estrutura e léxico se revelam de extraordinária e inegável riqueza histórica, metafórica e semântica.

Os ideais e a luta das forças republicanas que conduziram em Portugal à implantação da República em 5 de Outubro de 1910 e os emergentes movimentos protonacionalistas dos estudantes africanos, dos inícios do século XX, a favor do homem negro, dirigidos na sua grande maioria por estudantes santomenses – filhos da elite santomense, dantes possuidora de terras e escravos e que, não obstante os roubos e as expropriações de que eram alvo, os conseguiam manter ainda assim em Portugal – tiveram como consequência o advento de um grande movimento associativo no arquipélago.

É desse tempo, dentre outros, a criação em S. Tomé da “Caixa Económica de S. Tomé “ (1905), do Grémio de S. Tomé (1906), da famosa “Liga dos Interesses Indígenas de S. Tomé e Príncipe” (1910), de algumas associações desportivas e de lazer e, em 1927, do Sporting Clube de S. Tomé.

O surgimento dessas instituições e a prática associativa a que se dedicaram traduziram-se num importante factor que viria a dar lugar às primeiras afirmações identitárias dos santomenses, o que levaria Augusto Nascimento a afirmar que “ o associativismo santomense nos primeiros decénios de novecentos serviu de interface nos planos social, político e simbólico com os europeus e com o mundo” e que “o lazer passou a ser elemento de estratégia da elite nativa de alargamento da influência de associações várias e, depois, de elemento identitário de contornos raciais e políticos”. (12)

Merece, sem dúvida, destaque dentre essas associações, o Sporting Clube de S. Tomé, pelo destacado papel na consciencialização dos santomenses para a defesa, preservação e afirmação dos valores consubstanciadores da sua identidade. Uma associação desportiva que foi muito para além desse âmbito, vergonhosa e incrivelmente injustiçada nos alvores da independência nacional, ela que constituiu indesmentivelmente o baluarte seguro do pensamento independentista que conduziria o povo santomense ao 12 de Julho de 1975.

É também no quadro da plena fermentação desse sentimento de pertença a uma comunidade bem específica que ocorrem os acontecimentos de Fevereiro de 1953, provocados pela agudização do problema que consistiu sempre o nó górdio da gestão colonialista – a questão da mão-de-obra. Pode dizer-se, sem incorrer em erro, que a amplitude que os mesmos assumiram, em termos do número de santomenses então submetidos a prisões, torturas e morte, contribuiu para reforçar esse embrião gregário e específico, que mais não é do que o sentimento de uma nação há já alguns anos em forja.

A esse propósito, referindo-se à realidade cabo-verdiana, o sociólogo Camilo Querido da Graça afirma que “ o cabo-verdiano possui uma identidade étnica e cultural mestiça, evidenciando-se uma “disputa” entre uma produção cultural com traços eminentemente negro-africanos e outra que se pode caracterizar mestiça”.

Considerando embora as especificidades do processo de formação identitária dos dois arquipélagos, é crível dizer-se que o conceito encontra pleno cabimento em S. Tomé e Príncipe, onde o sentimento de nação convive com notórias diferenças, indefinições e ambiguidades e as vivências culturais da elite e da maioria do povo se demarcam de forma assaz preocupante.

Vivemos como que atormentados por uma luta surda entre os factores determinantes da nossa idiossincrasia crioula, em que os traços negro-africanos tendem a ser subalternizados a favor da sua componente mestiça, como que forjando em nós a angustiante situação que terá levado um conhecido poeta português a afirmar que “não há pior solidão de que a do homem alienado de si mesmo”.

Após esta breve reflexão sobre a nossa história de séculos e sobre a forma como ela contribuiu para forjar o que somos hoje, abramos aqui um breve parêntesis para fazer uma incursão pelas noções de Cultura, Nação e Estado, de modo a encontrar eventualmente resposta para alguns dos problemas com que se confronta a sociedade santomense e que podem estar na base dos desequilíbrios estruturais que nos vêm reduzindo as possibilidades de desenvolvimento.

Como é do conhecimento geral, o conceito de Nação está intimamente associado ao da Cultura, a ponto de ser comum afirmar-se que é pura farsa falar-se de nações sem que estas tenham como base e fundamento a Cultura. No que respeita aos Estados, não dispõem de qualquer sustentabilidade os que não têm como substrato a existência de uma nação ou de um conteúdo cultural aglutinador.

Chegados aqui, parece-me de todo pertinente colocar-vos algumas questões, na perspectiva de, juntos, podermos encontrar respostas para as mesmas:

• Não será que uma certa indefinição de que se vem revestindo a nossa identidade se prende com a ausência desse conteúdo cultural aglutinador que, na opinião abalizada de Amílcar Cabral, “garantem a continuidade da história e determinam as possibilidades de progresso ou de regressão de uma sociedade”? (13).
• Não será tempo de nos preocuparmos com um problema que parece afectar sobremaneira o nosso desenvolvimento e avançarmos, decididos, na reflexão profunda sobre o papel da cultura na construção do Estado e a relação entre a cultura e o desenvolvimento?
• Como caracterizar a situação de um Estado como o santomense em que, por vicissitudes históricas, tudo parece indicar que a Nação está ainda em formação e a Cultura, por inibição, insensibilidade ou incompreensão das elites, está muito longe de assumir o papel aglutinador que dela se esperaria?
• Será que é entendido pela elite santomense que a indiferença por ela manifestada para com a sua Cultura poderá estar a contribuir para dificultar a formação da Nação, força aglutinadora e catalizadora de qualquer Estado?

Se a Cultura é o embrião fortificador da Nação e esta o sustentáculo imprescindível do Estado, é tempo de debatermos sobre a nossa identidade, na perspectiva do desenvolvimento de uma política cultural que tenha em conta as particularidades do tecido social santomense e do reforço e consolidação do Estado de direito democrático ora em construção.

Num tempo em que imperam o imediatismo e o consumismo e em que a globalização, tendo embora em conta as inegáveis vantagens que aporta, traz também consigo os germes de uma hegemonia cultural não muito favorável aos interesses identitários dos povos, torna-se imprescindível que cada país, sem cair em nacionalismos de espírito agressivo e chauvinista, busque as melhores formas tendentes a preservar a sua identidade e nação.

Relembro a propósito o conhecido político português, Mário Soares, que afirmou em dada ocasião que “nos momentos difíceis, só com a mobilização das energias colectivas, a afirmação de uma grande ambição nacional e a valorização do que melhor somos e temos, é possível combater os reflexos negativos da auto-satisfação e do conformismo, partindo, com espírito crítico e a indispensável tensão criadora para a aventura exaltante de construção de um futuro de esperança para todos …”(14)
Tenhamos, pois, a sagrada missão de acarinhar, promover e divulgar os valores que reflectem e ilustram as fibras mais íntimas do nosso sentir colectivo, ou seja, a nossa cultura. Reapropriemo-nos dessa herança que vem dos fundos do tempo e, fazendo-o, reconheçamo-nos como os detentores de um passado pleno de ensinamentos e de valores, à revelia do qual o presente é de todo inócuo e o futuro se esfuma, isento de quaisquer expectativas.

Não tenhamos quaisquer dúvidas: a situação apela a todos nós, adultos e jovens, para a necessidade de promover a luta pelas grandes causas por que vale a pena lutar, ou sejam, o amor à pátria e ao povo, a fidelidade às nossas raízes históricas e culturais, a defesa do ambiente, da justiça e da liberdade, a luta contra a futilidade, a miséria, a exclusão, a ignorância e o medo.

É esta a tarefa que, ao fim e ao cabo, nos incumbe a todos. Terá de ser esse o caminho a seguir. Oxalá o saibamos trilhar com determinação, responsabilidade e êxito.

MUITO OBRIDADO

NOTAS

(1) - Francisco José Tenreiro – “A Ilha de S. Tomé”, Junta de Investigação do Ultramar, Lisboa, 1961, pág. 91.
(2) ”.(h) Isabel Castro Henriques, “ São Tomé e Príncipe – A Invenção de uma Sociedade”, Documenta Histórica, Lisboa, 2000, pág39.
(3) Carlos Agostinho das Neves, in “S. Tomé e Príncipe na Segunda Metade do Séc. XVIII, Secretaria Regional do Turismo, Cultura e Emigração, Funchal, e Instituto de História de Além-Mar, Lisboa, 1989, pág 189,
(4) Idem, pág. 156.
(5) Piloto Português, Navegação de Lisboa à Ilha de S. Tomé (séc. XVI – ca. 1545), Lisboa, Portugália, s.d.
(6) Augusto Nascimento, in “Nova História da Expansão Portuguesa – O Império Africano”, pág 274, Editorial Estampa, Lisboa – 1998.
(7) Carlos Agostinho das Neves, obra citada, pág 161
(8) Carlos A. das Neves, idem, pág.190.
(9)) Carlos A. das Neves, idem, pág 91.
(10) Camilo Querido Leitão da Graça – Cabo Verde, Formação e Dinâmicas Sociais, pág. 36, Instituto da Investigação e do Património Culturais, Praia, 2007.

(11) Francisco José Tenreiro – Obra citada, pág .
(12) Augusto Nascimento …..
(13) Amílcar Cabral – “Unidade e Luta”.
(14) Mário Soares – “Intervenções”, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, volume 8, pág 5

quarta-feira, janeiro 04, 2012