Bolseiro de pós-doutoramento Gerhard Seibert apresenta no último número da revista História (Outubro 2003) um importante enquadramento da obra Equador, de Miguel Sousa Tavares. Pelo facto desse enquadramento não se afastar da obra a que respeita, antes integrar os seus conteúdos, entendemos importante fazer a sua divulgação alargada. Importante, da mesma forma, os erros e imprecisões apontados.
Esta nossa ideia surge com reforço acrescido pelo facto de entendemos ser necessário chamar a atenção para uma realidade ainda pouco conhecida das pessoas em geral, mesmo entre aqueles que gostam e partilham o interesse pelas "coisas" da História. Diferente será já o cenário ao nível daqueles que se dedicam à pesquisa e à investigação.
No que respeita ao continente africano, nomeadamente, às ex-colónias portuguesas, muito ainda há para divulgar. Se pensarmos, então, no período que vai para além do século XVI e que antecede a Guerra Colonial, muito está para ser conhecido. É pois um pouco este lapso que aproveitamos agora para colmatar. E sem dúvida que o artigo que iremos apresentar contribui para que isso aconteça.
UM GOVERNADOR PARA S. TOMÉ
São Tomé e Príncipe no início do século XX é o palco principal deste romance histórico. Na altura, filantropos e chocolateiros ingleses desencadearam uma campanha contra as atrocidades praticadas pelos portugueses no arquipélago sobre os contratados angolanos nas suas plantações de cacau e café. Deixando uma vida confortável em Lisboa, em 1906 Luís Bernardo Valença é nomeado o novo governador de São Tomé e Príncipe com a missão de convencer os ingleses de que não havia trabalho escravo no arquipélago.
Pouco depois do governador, chega a São Tomé o cônsul inglês David Jameson, que tem por missão relatar às autoridades britânicas as condições de trabalho nas roças. Luís Bernardo defende uma colonização feita por processos e métodos modernos e civilizados. As suas posições iluminadas são veementemente repudiadas por todos os portugueses nas ilhas, isolando-o cada vez mais.
David, com quem partilha as mesmas ideias sobre o regime de contrato, torna-se o único amigo de Luís Bernardo no pequeno mundo insular. A relação amorosa clandestina entre o governador e Ann, a atractiva esposa do David, não afecta a amizade entre os dois homens mas, quando se transforma num segredo aberto, torna-se inesperadamente uma arma para os seus adversários em São Tomé. Depois de menos de dois anos fracassa tanto o seu relacionamento com Ann, como a sua missão de reconciliar os interesses dos roceiros com as exigências dos ingleses de acabar com o trabalho escravo em São Tomé e Príncipe.
Realidade histórica e ficção literária
Claro que o cônsul inglês em São Tomé é uma criação literária e é pouco provável que, na época, um governador português tenha defendido as posições de Luís Bernardo relativamente aos contratados. Utópico é imaginar que o governador, advogado de formação, até se faz de defensor oficioso dos trabalhadores fugidos da Roça Rio do Ouro. Pelos vistos, este romance também é uma tentativa literária da reposição da história colonial, mediante a criação da personagem de um governador humano que defende um colonialismo moderno e até se põe ao lado dos africanos. A realidade histórica é porem bem diferente da ficção.
No entanto, a polémica em torno do cacau escravo em São Tomé e Príncipe não é ficção. É um episódio histórico conhecido e bem documentado. O livro narra veridicamente estes acontecimentos, que culminaram com o boicote do cacau das ilhas pelos chocolateiros ingleses em 1909, assim como reproduz os respectivos argumentos dos roceiros portugueses e os seus adversários. O romance reflecte bem o contraste entre a riqueza e grandeza dos roceiros bem sucedidos, e as condições miseráveis dos contratados africanos em São Tomé e Príncipe. Relativamente a esta parte existem apenas algumas inexactidões menos relevantes. De facto, a produção anual de cacau de São Tomé e Príncipe na época não chegou às 30 mil toneladas. Este volume foi alcançado apenas no período de 1909 a 1914. Não houve explorações inglesas de cacau no Gabão, uma colónia francesa. E os serviçais angolanos não foram considerados cidadãos portugueses mas, ao contrário, eram categorizados como indígenas.
O outro São Tomé
Obviamente o autor é muito melhor familiarizado com a história da polémica do trabalho escravo do que com a geografia, antropologia e fauna do arquipélago. A parte são-tomense não foi investigada tão minuciosamente. Até os dados acerca da superficie das duas ilhas e da altitude do Pico de São Tomé são incorrectos. Na cidade de São Tomé, a Câmara Municipal não faz frente com o edifício onde funcionavam o Tribunal e os Correios. O Palácio do Governador não fica distante da Sé Catedral, mas directamente ao seu lado. Também é impossível que naquela altura Luís Bernardo vá de cavalo à Praia das Sete Ondas no meio das suas deambulações pela cidade, ou com tanta frequência à Praia Micondó, porque estas ficam muito distantes, no sul da ilha. A imaginação da volta pela cidade e destes passeios às praias não pode vir do mapa, mas provavelmente das reproduções do valioso livro "Antigos Postais de S. Tomé e Príncipe" de João Loureiro. Deste livro, o autor copiou aparentemente também o erro que havia serviçais angolares, em vez de angolanos ou angolenses. Os angolares são descendentes de escravos fugidos do século XVI, que constituíram um quilombo no inacessível sul de São Tomé. Como os forros, os outros crioulos nativos da ilha, os angolares sempre recusaram trabalhar em regime de contrato.
Ausência dos nativos
No romance, a população nativa de São Tomé e Príncipe é quase completamente inexistente. Não se sabe absolutamente nada sobre a sua posição dentro da sociedade colonial. Os seis empregados do governador são os únicos forros que aparecem com nome. Mas é impossível que, sobretudo na referida época, um deles se chamasse Mamoun, um nome árabe. Errada é também a descrição da típica habitação dos ilhéus como uma cubata, simples construção de madeira, em cujo interior se faz fogo de lenha para cozinhar. De facto, a casa característica dos forros é uma construção de madeira sobre estacas, frequentemente com várias divisões, e a cozinha é sempre separada da casa.
Também é pouco provável que o governador possa ouvir de manhã os primeiros gritos dos papagaios pelas janelas do seu palácio, visto que a única espécie de papagaio no arquipélago (...) existe somente no Príncipe. Ainda, a terrível serpente venenosa de São Tomé (...) não é conhecida por cobra negra, mas por cobra preta. A verdadeira flor emblemática das ilhas é mais a rosa de porcelana (...) e não a chamada rosa louca (...) do romance. Esta flor existe em São Tomé e Príncipe, mas lá esta designação é desconhecida. Absurdo é afirmar também, que a malária de São Tomé e Príncipe é mais letal do que a dos outros sítios. (...).
Imprecisões factuais
Outros erros factuais existem relativamente a datas. É impossível que Luís Bernardo leia o poema Serões de S. Tomé do escritor são-tomense Caetano da Costa Alegre (1864-1890) em 1906, pois as suas poesias foram publicadas somente postumamente, dez anos depois. Naquela altura também não há um bispo em São Tomé. Igualmente, o governador não pode ter convencido a professora do liceu local, que falava inglês a dar aulas de português ao cônsul e à sua esposa, porque o primeiro liceu em São Tomé foi fundado somente uns cinquenta anos mais tarde. Igualmente remota é a possibilidade que ele descobre para David um negro de Zamzibar que fala árabe, língua que o cônsul também domina, para lhe servir de intérprete de árabe para português. Aqui teria sido mais adequado criar a personagem de um homem da Serra Leoa, funcionário da Estação do Cabo Submarino em São Tomé, os chamados ingleses pretos, pois realmente existiram na altura. Um deles poderia ter servido ao cônsul inglês como intérprete de português para inglês.
A grandeza literária do romance histórico
Contudo, estes enganos e inexactidões evitáveis relativamente a São Tomé e Príncipe não prejudicam o romance. Do ponto de vista literário não são relevantes para o desenrolar da bem construída narrativa. E o leitor comum nem sequer os nota. Quem conhece bem São Tomé e os repara, poder-se-á conciliar com a ideia que fazem parte da liberdade de ficção. Graças ao estilo literário simples e à linguagem acessível lê-se com muita facilidade. Ao longo das quinhentas páginas a história fica cada vez mais interessante. Nunca se perde a curiosidade de continuar a leitura deste romance histórico até ao final inesperado.
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